sexta-feira, 3 de junho de 2022

A Galinha Degolada - Horácio Quiroga

A Galinha Degolada

O dia inteiro, sentados num banco do pátio, estavam os quatro filhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz. Tinham a língua entre os lábios, os olhos estúpidos e viravam a cabeça com a boca aberta.

O pátio era de terra, fechado a oeste por um muro de tijolos. O banco ficava paralelo a ele, a cinco metros, e ali eles se mantinham imóveis, os olhos fixos nos tijolos. Como o sol se ocultava atrás do muro ao se pôr, os idiotas faziam festa. A luz ofuscante chamava sua atenção no início, pouco a pouco seus olhos se animavam; riam-se, por fim, estrepitosamente, congestionados pela mesma hilaridade ansiosa, olhando para o sol com alegria bestial, como se fosse comida.

Em outros momentos, alinhados no banco, zumbiam horas inteiras, imitando o bonde elétrico. Os fortes ruídos sacudiam também sua inércia, e se punham então a correr, mordendo-se a língua e mugindo ao redor do pátio. Mas quase sempre estavam apagados num sombrio letargo do idiotismo. Com as pernas pendentes e quietas, empapando de saliva viscosa as suas calças.

O mais velho tinha doze anos e o mais novo, oito. Em todo seu aspecto sujo e desvalido, era notável a falta absoluta de um pouco de cuidado maternal.

Esses quatro idiotas, entretanto, tinham sido um dia o encanto dos seus pais. Aos três meses de casados, Mazzini e Berta orientaram seu estreito amor de marido e mulher, e mulher e marido, para um porvir muito mais vital: um filho. Que maior alegria para dois apaixonados que essa honrada consagração de seu carinho, libertado do vil egoísmo de um mútuo amor sem fim nenhum e, o que é pior para o próprio amor, sem esperanças possíveis de renovação?

Assim se sentiram Mazzini e Berta, e quando o filho chegou, aos catorze meses de matrimônio, acreditaram na completude de sua felicidade. A criança cresceu bela e radiante, até chegar a um ano e meio. Porém, no vigésimo mês, foi sacudida uma noite por convulsões terríveis, e na manhã seguinte não


reconhecia mais os seus pais. O médico examinou com essa atenção profissional que visivelmente busca as causas do mal nas enfermidades dos pais.

Depois de alguns dias, os membros paralisados recuperaram o movimento; mas a inteligência, a alma, até mesmo o instinto, tinham desaparecido totalmente; havia ficado profundamente idiota, babão, molenga, morto para sempre sobre os joelhos de sua mãe.

-  Filho, meu filho querido! soluçava ela sobre aquela espantosa ruína de seu primogênito.

O pai, desolado, acompanhou o médico à saída.

 

-   Ao senhor, o que eu posso dizer: creio que é um caso perdido. Poderá melhorar, se educar em tudo o que lhe permita seu idiotismo, mas nada além disso.

-   Sim!...Sim! assentia Mazzini . Mas me diga: O senhor acredita que é herança, que...?

-  Quanto à herança paterna, lhe disse o que achava quando vi o seu filho. Em relação à mãe, um pulmão que não sopra bem. Não vejo mais nada, mas um sopro um pouco áspero. Faça com que seja examinada minuciosamente.

Com a alma dilacerada de remorso, Mazzini redobrou o amor a seu filho, o pequeno idiota que pagava pelos excessos do avô. Teve também que consolar, apoiar constantemente a Berta, profundamente ferida por aquele fracasso de sua jovem maternidade.

Como é natural, o casal colocou todo o seu amor na esperança de outro filho. Ele nasceu, e sua saúde e limpidez de riso acenderam o porvir antes extinguido. Porém, aos dezoito meses, as convulsões do primogênito se repetiram, e no dia seguinte o segundo filho amanhecia idiota.


Desta vez os pais caíram em profundo desespero. Pois, seu sangue, seu amor eram malditos! Seu amor, sobretudo! Vinte e oito anos ele, vinte e dois ela, e toda sua apaixonada ternura não alcançava para criar um átomo de vida normal. Já não pediam mais beleza e inteligência como no primogênito; mas um filho, um filho como todos!

Do novo desastre brotaram novas chamas do dolorido amor, um louco desejo de redimir de uma vez por todas a santidade de sua ternura. Desta vez vieram gêmeos, e ponto a ponto se repetiu o processo dos dois mais velhos.

Mas, acima de sua imensa amargura, permanecia em Mazzini e Berta uma grande compaixão pelos seus quatro filhos. Foi necessário arrancar do limbo da mais profunda animalidade, já não suas almas, mas o instinto mesmo, abolido. Não sabiam engolir, mudar de lugar, nem mesmo sentar-se. Aprenderam finalmente a caminhar, mas se batiam contra tudo, por não se darem conta dos obstáculos. Quando eram lavados, mugiam até que ficassem injetados de sangue no rosto. Alegravam-se só quando comiam, ou quando viam cores brilhantes ou ouviam trovões. Eles riam então, jogando para fora a língua e rios de baba, radiantes de frenesi bestial. Tinham, entretanto, certa faculdade imitativa; mas não foi possível obter nada mais.

Com os gêmeos parecia ter concluído a aterradora descendência. Mas, passados três anos, desejaram de novo ardentemente um outro filho, confiando que o longo tempo transcorrido tivesse aplacado a fatalidade.

Não satisfaziam suas esperanças. E nesse ardente anseio que se exasperava em razão de sua infrutuosidade, tornaram-se mais amargos. Até esse momento cada qual tinha tomado para si a parte que lhe correspondia na miséria de seus filhos; mas a desesperança de redenção diante das quatro bestas que tinham nascido deles provocou essa imperiosa necessidade de culpar os outros, que é patrimônio específico dos corações inferiores.


Começaram pela troca de pronome: teus filhos. E como além do insulto havia a insídia, a atmosfera ficava carregada.

-   Eu acho     disse-lhe uma noite Mazzini, que acabava de entrar e lavava suas mãos     que tu poderias manter mais limpos os meninos.

Berta continuou lendo como se não tivesse ouvido.

 

-   É a primeira vez     respondeu em seguida  que te vejo preocupado pelo estado dos teus filhos.

Mazzini virou o rosto para ela com um sorriso forçado:


-  De nossos filhos, quer dizer?

-  Bom, dos nossos filhos. Melhor assim?                                                 ela levantou os olhos. Desta vez Mazzini se expressou claramente:

-  Acredito que não vais dizer que eu tenha a culpa, não?

 

-  Ah não!      Sorriu Berta, muito pálida.      Mas eu também não, suponho!...

Era o que me faltava!...     murmurou.

 

-  O que te faltava?

 -  Que se alguém tem a culpa, não sou eu, dá pra entender bem! Isso é que eu queria te dizer.

Seu marido a olhou por um momento, com brutal desejo de insultá-la.

 

-  Vamos deixar assim!     disse, secando por fim as mãos.

 -  Como quiseres; mas se queres dizer...

 

-  Berta!

 -  Como quiseres!


Esse foi o primeiro choque e sucederam-lhe outros. Mas nas inevitáveis reconciliações, suas almas se uniam com o dobro de arrebatamento e loucura por outro filho.

Nasceu assim uma menina. Viveram dois anos com a angústia à flor da pele, esperando sempre outro desastre. Nada aconteceu, entretanto, e os pais puseram nela toda sua complacência, que a pequena levava aos mais extremos limites do mimo e da criação.

Se ainda nos últimos tempos Berta cuidava sempre de seus filhos, ao nascer Bertita, esqueceu-se quase por completo dos outros. Sua mera lembrança a horrorizava, como algo atroz que a tivessem obrigado a cometer. Para Mazzini, ainda que em menor grau, acontecia o mesmo. Nem por isso a paz havia chegado às suas almas. A menor indisposição de sua filha aflorava, com o terror de perdê- la, os rancores de sua descendência podre. Haviam acumulado fel a bastante tempo para que o copo não ficasse cheio e, ao menor contato o veneno, jorrasse para fora. Desde o primeiro desgosto peçonhento, tinham perdido o respeito; e se há algo pelo qual o homem se sente arrastado com cruel fruição é, depois de começar, terminar de humilhar uma pessoa por completo. Antes se continham pela mutua falta de sucesso; agora que o tinham alcançado, cada qual, atribuindo- o a si mesmo, sentia maior a infâmia das quatro criaturas que o outro o havia forçado a engendrar.

Com estes sentimentos, não houve afeto possível para os quatro filhos maiores. A criada os vestia, dava de comer, punha-os na cama, com visível brutalidade. Não os lavavam quase nunca. Passavam todo o dia sentados de frente pro muro, abandonados pela mais remota carícia. Desta maneira, Bertita fez quatro anos e, nessa noite, resultado das guloseimas que era aos pais algo absolutamente impossível de negar-lhe, a criança teve algum calafrio e febre. E o temor de vê-la morrer ou ficar idiota, tornou a reabrir a eterna chaga.

Fazia três horas que não falavam, e o motivo foi, como quase sempre, os fortes passos de Mazzini.


-  Meus Deus! Não podes caminhar mais devagar? Quantas vezes...?

 -  Bom, é que eu me esqueço; deu! Não faço de propósito. Ela sorriu, desdenhosa: - Não, não acredito muito em ti...

-  Nem eu jamais teria acreditado em ti... tisicazinha!

-  O quê! O que disseste?...

-  Nada!

-  Sim, falaste algo! Olha: eu não sei o que disseste; mas te juro que prefiro qualquer coisa do que ter um pai como o que tu tiveste!

Mazzini ficou pálido.

 

-   Até que enfim! murmurou com os dentes apertados Até que enfim, víbora, falaste o que querias!

-  Sim, víbora sim! Mas eu tive pais saudáveis, ouviste? Saudáveis! Meu pai não morreu de delírio! Eu teria filhos como os de todo mundo! Esses filhos são teus, os quatro teus!

Mazzini então explodiu.


-  Víbora tísica! É isso o que eu te disse, o que eu quero te dizer! Pergunta ao médico quem tem a maior culpa da meningite dos teus filhos: meu pai ou teu pulmão furado, víbora!

Continuaram cada vez com maior violência, até que um gemido de Bertita selou instantaneamente suas bocas. À uma da manhã a leve indigestão tinha desaparecido, e como acontece fatalmente com todos os matrimônios jovens que se amaram intensamente ao menos uma vez, a reconciliação chegou, tão mais efusiva quanto foram infames os agravos.


Amanheceu um esplêndido dia, e enquanto Berta se levantava, cuspiu sangue. As emoções e a má noite anterior tinham, sem dúvida, grande culpa. Mazzini a manteve abraçada por longo tempo, e ela chorou desesperadamente, mas sem que nenhum se atrevesse a dizer uma palavra.

Às dez decidiram sair, depois de almoçar. Como tinham pouco tempo, mandaram que a criada matasse uma galinha.

O dia radiante tinha arrancado os idiotas do seu banco. De maneira que, enquanto a criada degolava o animal na cozinha, sangrando-o calmamente (Berta tinha aprendido com sua mãe essa boa maneira de conservar o frescor da carne), sentiu que havia algo atrás dela. Virou-se e viu os quatro idiotas, com os ombros colados um no outro, olhando estupefatos a operação... Vermelho... vermelho...

-  Senhora, os meninos estão aqui, na cozinha.

Berta chegou; não queria jamais que pisassem ali. E nem nessas horas de pleno perdão, esquecimento e felicidade reconquistada, podia evitar essa horrível visão! Porque, naturalmente, quanto mais intensos eram os raptos de amor para com seu marido e filha, mais irritado era seu humor com os monstros.

-  Que saiam, Maria! Expulse-os! Expulse-os, lhe digo!

As quatro pobres bestas, sacudidas, brutalmente empurradas, foram parar no seu banco.

Depois de almoçar saíram todos. A criada foi a Buenos Aires e o matrimônio foi passear pelas chácaras vizinhas. Voltaram ao cair do sol; mas Berta quis cumprimentar por um tempo as suas vizinhas da frente. Sua filha se escapou em seguida para casa.


Entretanto os idiotas não tinham saído durante todo o dia do seu banco. O sol tinha ultrapassado o muro, começava a se pôr, e eles continuavam olhando os tijolos, mais inertes que nunca.

De repente algo se interpôs entre seu olhar e o muro. Sua irmã, cansada de cinco horas paternais, queria observar por conta própria. Parada ao do muro, olhava pensativa para a parte de cima. Queria subir, não havia dúvidas. No fim se decidiu por uma cadeira sem assento, mas ainda não alcançava. Recorreu então a um caixote de querosene, e seu instinto topográfico a fez colocá-lo na vertical, com o qual triunfou.

Os quatro idiotas, o olhar indiferente, viram como sua irmã conseguia pacientemente dominar o equilíbrio e como, nas pontas dos pés, apoiava a garganta sobre o topo do muro, entre suas mãos esticadas. Viram-na olhar para todos os lados, e buscar apoio com o para subir mais.

Mas o olhar dos idiotas havia se animado; uma mesma luz insistente estava fixa em suas pupilas. Não tiravam os olhos de sua irmã enquanto uma crescente sensação de gula bestial ia transformando cada linha de seus rostos. Lentamente avançaram sobre o muro. A pequena, que tinha conseguido calçar o pé, já estava por montar no muro e cair certamente para o outro lado, sentiu que lhe agarraram pela perna. Debaixo dela, os oito olhos cravados nos seus lhe deram medo.

-  Me solta! Me deixa!     gritou sacudindo a perna. Mas foi agarrada.

 

-   Mamãe! Ai, mamãe! Mamãe, papai! chorou imperiosamente. Tentou ainda se agarrar na borda, mas foi arrancada e caiu.

-  Mamãe, ai! Ma... Não pôde mais gritar. Um deles apertou-lhe o pescoço, afastando os cachos como se fossem penas, e os outros a arrastaram por uma perna até a cozinha, onde nessa manhã tinham sangrado a galinha, bem agarrada, arrancando-lhe a vida segundo a segundo.


Mazzini, na casa da frente, achou ter ouvido a voz de sua filha.

 

-  Acho que está te chamando      disse à Berta.

 

Prestaram atenção, inquietos, mas não ouviram mais. Mesmo assim, um momento depois se despediram, e enquanto Berta ia guardar seu chapéu, Mazzini avançou até o pátio.

-  Bertita!

 

-  Ninguém respondeu.

 

-  Bertita!    Aumentou mais a voz, alterada.

 

E o silêncio foi tão fúnebre para seu coração tão aterrorizado, que suas costas congelaram de um horrível pressentimento.

-   Minha filha, minha filha! correu já desesperado para o fundo. Mas ao passar diante da cozinha, viu no chão um mar de sangue. Empurrou violentamente a porta entreaberta, e lançou um grito de horror.

Berta, que também já havia se lançado correndo ao ouvir o angustiante chamado do pai, ouviu o grito e respondeu com outro. Mas ao precipitar-se na cozinha, Mazzini, lívido como a morte, se interpôs, contendo-a:

-  Não entres! Não entres!

Berta chegou a ver o chão inundado de sangue. Só conseguiu levar os braços à cabeça e jogar-se em cima dele, com um áspero suspiro.


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