sexta-feira, 3 de junho de 2022

O Travesseiro de Penas - Horacio Quiroga

Sua lua de mel foi um longo calafrio. Loira, angelical e tímida, o forte temperamento de seu marido congelou as suas sonhadas fantasias de noiva. Ela o adorava muito, entretanto, às vezes com um ligeiro estremecimento quando, ao voltarem de noite juntos pela rua, ela dava uma furtiva olhada para a alta estatura de Jordán, mudo fazia uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem que ela percebesse.

Durante três meses tinha se casado em abril viveram uma especial alegria.

Sem dúvidas teria ela desejado menos severidade neste rígido céu de amor, uma ternura mais expansiva e incauta; mas o impassível semblante de seu marido sempre a continha.

A casa em que viviam influenciava um pouco em seus estremecimentos. A brancura do pátio silencioso frisos, colunas e estátuas de mármore produzia uma impressão outonal de palácio encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sequer havia o mais leve arranhão nas altas paredes, confirmava aquela sensação de incômodo frio. Ao cruzar de uma peça a outra, os passos ecoavam em toda a casa, como se um longo abandono houvesse sensibilizado sua ressonância.

Neste estranho ninho de amor, Alícia passou todo o outono. Não obstante, decidiu por colocar um véu sobre seus antigos sonhos, e vivia como adormecida na casa hostil, sem querer pensar em nada até que chegasse o seu marido.

Não se estranha que tenha emagrecido. Teve um ligeiro ataque de gripe que se arrastou insidiosamente por vários dias; Alícia não se recuperava nunca. Por fim pôde sair uma tarde ao jardim apoiada no braço dele. Olhava indiferente para os lados. De repente Jordán, com grande ternura, passou a mão por sua cabeça, e logo Alícia irrompeu em soluços, colocando seus braços no pescoço dele. Chorou longamente todo seu espanto calado, aumentando o pranto a qualquer


tentativa de carícia. Logo os soluços foram diminuindo, e ficou ainda por longo tempo escondida em seu pescoço, sem se mover nem dizer uma palavra.

 

 

 

Esse foi o último dia que Alícia esteve levantada. No dia seguinte amanheceu desvanecida. O médico de Jordán a examinou com suma atenção, pedindo-lhe calma e descanso absolutos.

-   Não sei  disse a Jordán na porta da frente, com a voz ainda baixa  ela tem uma grande fraqueza que não se explica, e sem vômitos, nada... Se amanhã ela se levantar como hoje me chame em seguida.

No outro dia Alícia continuava pior. Foi examinada. Constatou-se uma anemia agudíssima, completamente inexplicável. Alícia não teve mais desmaios, mas estava visivelmente indo em direção à morte. O quarto estava com as luzes acesas durante todo o dia e em pleno silêncio. Passavam as horas sem que se ouvisse o menor ruído. Alícia cochilava. Jordán quase vivia na sala, também com a luz toda acesa. Caminhava sem cessar de um extremo a outro, com incansável obstinação. O tapete amortecia seus passos. A cada tanto entrava no dormitório e prosseguia seu mudo vaivém ao redor da cama, olhando sua mulher cada vez que caminhava em sua direção.

Em pouco tempo Alícia começou a ter alucinações, confusas e flutuantes no início, e que logo descenderam ao chão. A jovem, com os olhos desmesuradamente abertos, olhava apenas para o tapete de um lado a outro da cama. Uma noite, de repente, permaneceu olhando fixamente. Logo depois abriu a boca para gritar, e seu nariz e lábios encheram-se de suor.

-   Jordán! Jordán!     gritou, rígida de espanto,  sem deixar de olhar para o tapete.

Jordán correu para o quarto, e ao vê-lo se aproximar Alícia deu um grito de horror.


-  Sou eu, Alícia, sou eu!

 

Alícia o olhou perdidamente, olhou para o tapete, voltou a olhá-lo, e depois de um longo tempo de estupefata confrontação, se acalmou. Sorriu e tomou entre as suas a mão de seu marido, acariciando-a tremendo.

Entre suas alucinações mais persistentes, houve um antropoide, apoiado no tapete sobre os dedos, que tinha os olhos fixos nela.

Os médicos retornaram inutilmente. Havia ali diante deles uma vida que se acabava, definhando dia a dia, hora a hora, sem que se soubesse absolutamente como. Na última consulta Alícia jazia num estupor enquanto eles tomavam-lhe o pulso, passando de um a outro o punho inerte. Observaram-na por longo tempo em silêncio e foram para a sala de estar.

-                          seu médico encolheu os ombros desanimado. É um caso sério... não muito o que fazer...

 

-  me faltava essa!     suspirou Jordán. E tamborilou bruscamente sobre a

mesa.

 

Alícia foi se extinguindo no seu delírio de anemia, que piorava à tarde, mas que sempre diminuía nas primeiras horas. Durante o dia a sua doença não avançava, mas a cada manhã ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia que unicamente de noite a vida lhe escapava em novas ondas de sangue. Tinha sempre ao acordar a sensação de estar jogada na cama com um milhão de quilos em cima. Desde o terceiro dia este abatimento não a abandonou mais. Apenas podia mover a cabeça. Não quis que mexessem na cama, nem mesmo que lhe ajeitassem o travesseiro. Seus terrores crepusculares avançaram em forma de monstros que se arrastavam até a cama e trepavam dificultosamente pela colcha.

Logo perdeu a consciência. Os dois dias finais delirou sem cessar em voz baixa. As luzes continuavam funebremente acendidas no dormitório e na sala.


No silêncio agonizante da casa, apenas se ouvia o delírio monótono que saía da cama, e o rumor abatido dos eternos passos de Jordán.

Alícia morreu, por fim. A criada, que entrou depois para arrumar a cama, sozinha, olhou por um instante com estranheza ao travesseiro.

-  Senhor! chamou Jordán em voz baixa. Há manchas no travesseiro que parecem sangue.

Jordán aproximou-se rapidamente e se curvou sobre ele. De fato, sobre a fronha em ambos os lados do buraco que havia deixado a cabeça de Alícia, via-se pequenas manchas escuras.

-  Parecem picadas murmurou a criada depois de um instante de imóvel observação.

-  Erga-o na luz     Disse-lhe Jordán.

 

A criada o levantou, mas logo o deixou cair, e ficou olhando aquilo, lívida e tremendo. Sem saber por quê, Jordán sentiu que seus cabelos se eriçavam.

-  Que tem aí?     murmurou com a voz roca.

 

-  Pesa muito     articulou a empregada, sem deixar de tremer.

 

Jordán levantou o travesseiro; pesava extraordinariamente. Saíram com ele, e sobre a mesa da sala Jordán cortou fronha e envoltório num só corte. As penas superiores voaram, e a criada deu um grito de horror com toda a boca aberta, levando as mãos crispadas aos cabelos. No fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchado que mal conseguia abrir a boca.

Noite após noite, desde que Alícia tinha ficado de cama, ele havia aplicado sigilosamente sua boca sua trompa, melhor dizendo nas têmporas da mulher, sugando o seu sangue. A picada era quase imperceptível. A remoção diária do


travesseiro havia sem dúvidas impedido o seu desenvolvimento, mas desde que a jovem não conseguiu mais se mover, a sucção foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites havia esvaziado Alícia.

Estes parasitas das aves, diminutos no meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece ser-lhes particularmente favorável, e não é raro encontrá-los em travesseiros de pena.

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