sexta-feira, 3 de junho de 2022

À Deriva - Horacio Quiroga

O homem pisou em algo meio mole e em seguida sentiu uma picada no pé. Deu um salto para frente, e ao virar-se com um xingamento, viu uma jararacuçu que, enrolada sobre si mesma, esperava outro ataque.

O homem deu uma rápida olhada no seu pé, onde duas pequenas gotas de sangue engrossavam dificultosamente, e tirou um facão da cintura. A víbora viu a ameaça e afundou mais a cabeça no centro de sua própria espiral; mas o facão acertou-lhe o lombo, deslocando suas vértebras.

O homem se agachou até a mordida, tirou as pequenas gotas de sangue e durante um instante contemplou. Uma dor aguda nascia dos dois pontinhos roxos, e começava a invadir todo o pé. Apressadamente atou o tornozelo com seu lenço e seguiu pela trilha até o seu rancho.

A dor no pé aumentava, com sensação de um grande inchaço, e logo o homem sentiu duas ou três fulgurantes pontadas que, como relâmpagos, irradiavam da ferida até a metade da panturrilha. Movia a perna com dificuldade; uma metálica secura na garganta, seguida de uma sede queimante, arrancou-lhe outro xingamento.

Chegou finalmente no rancho e se jogou de braços sobre a roda de um moinho. Os dois pontinhos roxos desapareceriam agora e o monstruoso inchaço do pé inteiro. A pele parecia mais fina a ponto de ceder, de tão tensa. Ele quis chamar sua mulher e a voz travou-lhe num arrastar rouco de garganta ressecada. A sede o devorava.

-  Dorotea!    conseguiu articular em meio à agonia. - Me canha!

 

Sua mulher correu com um copo cheio, que o homem tomou em três goles.

Porém não havia sentido gosto algum.

 

-  Te pedi canha, não água!     rugiu de novo. - Me canha!


-  Mas é canha, Paulino!     protestou a mulher, espantada.

 

-  Não, me trouxeste água! Quero canha, estou te dizendo!

 

A mulher correu outra vez, voltando com a garrafa. O homem tomou dois copos, um atrás do outro, mas não sentiu nada na garganta.

Bem; isto está ficando feio murmurou então, olhando seu pé lívido e com um brilho gangrenoso. Sobre a funda atadura do lenço, a carne transbordava como uma monstruosa morcilha.

As dores fulgurantes aconteciam em contínuos relâmpagos e estavam chegando à virilha. A atroz secura da garganta que a respiração parecia aquecer, aumentava cada vez mais. Quando tentou levantar, um fulminante vômito o manteve meio minuto com a testa apoiada na roda da madeira.

Mas o homem não queria morrer, e descendo até a margem, subiu na sua canoa. Sentou-se na popa e começou a remar até o centro do Paraná. Ali, a corrente do rio, que nas imediações do Iguaçu corre a seis milhas, o levaria antes das cinco horas a Tacuru-Pucu.

O homem, com sombria energia, pôde efetivamente chegar até o meio do rio; mas ali, suas mãos dormentes deixaram cair o remo na canoa, e depois de um novo vômito de sangue dessa vez observou o sol, que ultrapassava o monte.

A perna inteira, até meia coxa, já era um bloco desforme e duríssimo que arrebentava a roupa. O homem cortou a atadura e abriu a calça com sua faca: o baixo ventre transbordou inchado, com grandes manchas lívidas  e terrivelmente doloroso. O homem pensou que não poderia jamais chegar sozinho a Tacuru-Pucu, e decidiu pedir ajuda a seu compadre Alves, ainda que fizesse muito tempo que eles não se davam mais.


A corrente do rio se precipitava agora em direção à margem brasileira, e o homem pôde facilmente atracar. Arrastou-se pela trilha ladeira acima, mas, aos vinte metros, exausto, ficou estendido de bruços.

-  Alves!  gritou com toda maior força possível; e prestou atenção em vão.

- Compadre Alves! Não me negue esse favor! clamou novamente, levantando a cabeça do chão. No silêncio da selva não se ouviu um rumor sequer. O homem teve ainda forças para voltar até sua canoa, e a corrente, agarrando-a de novo, levou-a velozmente à deriva.

O Paraná corre ali no fundo de uma imensa bacia, cujas paredes, altas de cem metros, estreitam funebremente o rio. Das orlas bordeadas de negros blocos de basalto, ergue-se o bosque, negro também. Adiante, nos lados, atrás, a eterna muralha lúgubre, em cujo fundo o rio em remoinho se precipita em incessantes borbotões de água lodosa. A paisagem é agressiva, e reina nela um silêncio de morte. Ao entardecer, entretanto, sua beleza sombria e calma adquire uma majestade única.

O sol já havia se posto quando o homem, semi-estendido no fundo da canoa, teve um violento calafrio. E em seguida, surpreso, ergueu pesadamente a cabeça: se sentia melhor. A perna mal doía, a sede diminuía, e seu peito, já livre, se abria em lenta inspiração.

O veneno começava a ir embora, não havia dúvidas. Encontrava-se quase bem, e mesmo que não tivesse forças para mover a mão, contava com a queda do orvalho para recuperar-se totalmente. Calculou que em menos de três horas estaria em Tacuru-Pucu.

O bem-estar avançava, e com ele uma sonolência cheia de recordações. não sentia nada nem na perna nem no ventre. Seu compadre Gaona moraria ainda em Tacuru-Pucu? Caso visse também o seu ex-patrão mister Dougald e o estoquista da madeireira.


Chegaria logo? O céu, ao poente, se abria agora numa tela de ouro e o rio estava colorido também. Da margem paraguaia, já escurecida, o monte deixava cair sobre o rio seu frescor crepuscular, em penetrantes eflúvios de laranjeira e mel silvestre. Um casal de araras cruzou bem alto e em silêncio até o Paraguai.

Lá embaixo, sobre o rio de ouro, a canoa avançava velozmente, girando a cada tanto sobre si mesma diante do borbotão de um remoinho. O homem que ia nela se sentia cada vez melhor, e enquanto isso pensava no tempo que havia passado sem ver o seu ex-patrão Dougald. Três anos? Talvez não, não tanto. Dois anos e nove meses? Talvez. Oito meses e meio? Isso sim, certamente.

De repente sentiu que estava gelado até o peito. O que seria? E a respiração...

O estoquista de madeiras do mister Dougald, Lorenzo Cubilla, eu o conheci em Puerto Esperanza numa sexta-feira santa... sexta? Sim, ou quinta...

O homem esticou lentamente os dedos da mão.

 

- Numa quinta...

 

E parou de respirar.

 

 

 

O Travesseiro de Penas - Horacio Quiroga

Sua lua de mel foi um longo calafrio. Loira, angelical e tímida, o forte temperamento de seu marido congelou as suas sonhadas fantasias de noiva. Ela o adorava muito, entretanto, às vezes com um ligeiro estremecimento quando, ao voltarem de noite juntos pela rua, ela dava uma furtiva olhada para a alta estatura de Jordán, mudo fazia uma hora. Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem que ela percebesse.

Durante três meses tinha se casado em abril viveram uma especial alegria.

Sem dúvidas teria ela desejado menos severidade neste rígido céu de amor, uma ternura mais expansiva e incauta; mas o impassível semblante de seu marido sempre a continha.

A casa em que viviam influenciava um pouco em seus estremecimentos. A brancura do pátio silencioso frisos, colunas e estátuas de mármore produzia uma impressão outonal de palácio encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sequer havia o mais leve arranhão nas altas paredes, confirmava aquela sensação de incômodo frio. Ao cruzar de uma peça a outra, os passos ecoavam em toda a casa, como se um longo abandono houvesse sensibilizado sua ressonância.

Neste estranho ninho de amor, Alícia passou todo o outono. Não obstante, decidiu por colocar um véu sobre seus antigos sonhos, e vivia como adormecida na casa hostil, sem querer pensar em nada até que chegasse o seu marido.

Não se estranha que tenha emagrecido. Teve um ligeiro ataque de gripe que se arrastou insidiosamente por vários dias; Alícia não se recuperava nunca. Por fim pôde sair uma tarde ao jardim apoiada no braço dele. Olhava indiferente para os lados. De repente Jordán, com grande ternura, passou a mão por sua cabeça, e logo Alícia irrompeu em soluços, colocando seus braços no pescoço dele. Chorou longamente todo seu espanto calado, aumentando o pranto a qualquer


tentativa de carícia. Logo os soluços foram diminuindo, e ficou ainda por longo tempo escondida em seu pescoço, sem se mover nem dizer uma palavra.

 

 

 

Esse foi o último dia que Alícia esteve levantada. No dia seguinte amanheceu desvanecida. O médico de Jordán a examinou com suma atenção, pedindo-lhe calma e descanso absolutos.

-   Não sei  disse a Jordán na porta da frente, com a voz ainda baixa  ela tem uma grande fraqueza que não se explica, e sem vômitos, nada... Se amanhã ela se levantar como hoje me chame em seguida.

No outro dia Alícia continuava pior. Foi examinada. Constatou-se uma anemia agudíssima, completamente inexplicável. Alícia não teve mais desmaios, mas estava visivelmente indo em direção à morte. O quarto estava com as luzes acesas durante todo o dia e em pleno silêncio. Passavam as horas sem que se ouvisse o menor ruído. Alícia cochilava. Jordán quase vivia na sala, também com a luz toda acesa. Caminhava sem cessar de um extremo a outro, com incansável obstinação. O tapete amortecia seus passos. A cada tanto entrava no dormitório e prosseguia seu mudo vaivém ao redor da cama, olhando sua mulher cada vez que caminhava em sua direção.

Em pouco tempo Alícia começou a ter alucinações, confusas e flutuantes no início, e que logo descenderam ao chão. A jovem, com os olhos desmesuradamente abertos, olhava apenas para o tapete de um lado a outro da cama. Uma noite, de repente, permaneceu olhando fixamente. Logo depois abriu a boca para gritar, e seu nariz e lábios encheram-se de suor.

-   Jordán! Jordán!     gritou, rígida de espanto,  sem deixar de olhar para o tapete.

Jordán correu para o quarto, e ao vê-lo se aproximar Alícia deu um grito de horror.


-  Sou eu, Alícia, sou eu!

 

Alícia o olhou perdidamente, olhou para o tapete, voltou a olhá-lo, e depois de um longo tempo de estupefata confrontação, se acalmou. Sorriu e tomou entre as suas a mão de seu marido, acariciando-a tremendo.

Entre suas alucinações mais persistentes, houve um antropoide, apoiado no tapete sobre os dedos, que tinha os olhos fixos nela.

Os médicos retornaram inutilmente. Havia ali diante deles uma vida que se acabava, definhando dia a dia, hora a hora, sem que se soubesse absolutamente como. Na última consulta Alícia jazia num estupor enquanto eles tomavam-lhe o pulso, passando de um a outro o punho inerte. Observaram-na por longo tempo em silêncio e foram para a sala de estar.

-                          seu médico encolheu os ombros desanimado. É um caso sério... não muito o que fazer...

 

-  me faltava essa!     suspirou Jordán. E tamborilou bruscamente sobre a

mesa.

 

Alícia foi se extinguindo no seu delírio de anemia, que piorava à tarde, mas que sempre diminuía nas primeiras horas. Durante o dia a sua doença não avançava, mas a cada manhã ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia que unicamente de noite a vida lhe escapava em novas ondas de sangue. Tinha sempre ao acordar a sensação de estar jogada na cama com um milhão de quilos em cima. Desde o terceiro dia este abatimento não a abandonou mais. Apenas podia mover a cabeça. Não quis que mexessem na cama, nem mesmo que lhe ajeitassem o travesseiro. Seus terrores crepusculares avançaram em forma de monstros que se arrastavam até a cama e trepavam dificultosamente pela colcha.

Logo perdeu a consciência. Os dois dias finais delirou sem cessar em voz baixa. As luzes continuavam funebremente acendidas no dormitório e na sala.


No silêncio agonizante da casa, apenas se ouvia o delírio monótono que saía da cama, e o rumor abatido dos eternos passos de Jordán.

Alícia morreu, por fim. A criada, que entrou depois para arrumar a cama, sozinha, olhou por um instante com estranheza ao travesseiro.

-  Senhor! chamou Jordán em voz baixa. Há manchas no travesseiro que parecem sangue.

Jordán aproximou-se rapidamente e se curvou sobre ele. De fato, sobre a fronha em ambos os lados do buraco que havia deixado a cabeça de Alícia, via-se pequenas manchas escuras.

-  Parecem picadas murmurou a criada depois de um instante de imóvel observação.

-  Erga-o na luz     Disse-lhe Jordán.

 

A criada o levantou, mas logo o deixou cair, e ficou olhando aquilo, lívida e tremendo. Sem saber por quê, Jordán sentiu que seus cabelos se eriçavam.

-  Que tem aí?     murmurou com a voz roca.

 

-  Pesa muito     articulou a empregada, sem deixar de tremer.

 

Jordán levantou o travesseiro; pesava extraordinariamente. Saíram com ele, e sobre a mesa da sala Jordán cortou fronha e envoltório num só corte. As penas superiores voaram, e a criada deu um grito de horror com toda a boca aberta, levando as mãos crispadas aos cabelos. No fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchado que mal conseguia abrir a boca.

Noite após noite, desde que Alícia tinha ficado de cama, ele havia aplicado sigilosamente sua boca sua trompa, melhor dizendo nas têmporas da mulher, sugando o seu sangue. A picada era quase imperceptível. A remoção diária do


travesseiro havia sem dúvidas impedido o seu desenvolvimento, mas desde que a jovem não conseguiu mais se mover, a sucção foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites havia esvaziado Alícia.

Estes parasitas das aves, diminutos no meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece ser-lhes particularmente favorável, e não é raro encontrá-los em travesseiros de pena.

À Deriva - Horacio Quiroga