sexta-feira, 16 de julho de 2010

O Inferno Artificial - Horácio Quiroga

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Nas noites de luar o coveiro avança por entre os túmulos com passo particularmente rígido. Está nu da cintura para cima e leva à cabeça um grande chapéu de palha. O sorriso, fixo, parece estar pregado à cara com cola. Se estivesse descalço se notaria que caminha com os polegares dos pés dobrados para baixo.

Isto não tem nada de estranho porque o coveiro abusa do clorofórnio. Circunstâncias do ofício levaram-no a provar o anestésico, e , quandoo clorofórnio morde um homem dificilmente solta. Nosso conhecido espera a noite para destapar o frasco e, como é sensato, escolhe o cemitério como o inviolável teatro de suas bebedeiras.

O clorofórnio dilata o peito na primeira inspiração; na segunda, inunda a boca de saliva; pés e mãos formigam na terceira; na quarta, os lábios, juntamente com idéias, incham, e logo se passam coisas extravagantes.

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E assim o capricho dos passos levou o coveiro até um túmulo aberto em que à tarde houve remoção de ossos-não concluída por falta de tempo. Um caixão ficou aberto atrás da grade, tendo ao lado sobre a areia, o esqueleto do homem que esteve fechado nele.

...Ouviu algo, não é verdade? Nosso conhecido abre o ferrolho, entra, e, após dar a volta ao homem de osso, ajoelha-se e aproxima seus olhos das órbitas da caveira.

Ali, no fundo, um pouco acima da base do crânio, pendurado como em um parapeito numa dobrado occipital, está aninhado um homenzinho trêmulo, amarelo, o rosto cheio de rugas. Tem boca arroxeada, as órbitas bem fundas e o olhar enlouquecido de ânsia.
É tudo que resta de uma cocainômano.

- Cocaína! Por favor, um pouco de cocaína!
O coveiro, sereno, sabe bem que ele próprio poderia dissolver com a saliva a tampa de seu frasco, para alcançar o clorofórnio proibido. É, pois, é seu dever ajudar o homenzinho trêmulo.
Sai e retorna com a seringa cheia, que se infiltra e desaparece por entre as fendas.
Mas é certo que algo chegará á abertura a que o homenzinho aderira desesperadamente. Depois de oito anos de abstinência, que molécula de cocaína não acende um delírio de força, juventude, beleza?

O coveiro fixou o olhar na órbita da caveira, e não reconheceu o homenzinho moribundo. Na cútis, firme e limpa, não havia o menos rastro de ruga. Os lábios, vermelhos e vitais, entremordiam-se com preguiçosa volúpia que não teria explicação viril se os hipnóticos não fossem quase todos femininos; e os olhos, sobretudo, antes vidrentos e apagados, brilhavam agora com tal paixão que o coveiro teve um impulso de surpresa invejosa.
- É isso, assim... a cocáina? - mumurou.

A voz do interior soou com encanto inefável.
- Ah! É necessário saber o que são oito anos de agonia! Oito anos, desesperado, gelado, preso à eternidade pela única esperança de uma gota!... Sim, é pela cocaína... E você? Conheço esse odor... clorofórnio?

- Sim - retomou o coveiro envergonhado pela misquinharia do seu paraíso artificial. E acrescentou em voz baixa: - O clorofórnio também... Eu me mataria se tivesse que abandoná-lo.
A voz soou um pouco zombeteira.
- Matar-se! E concluiria com segurança que seria como qualquer desses meus vizinhos... Apodreceria em três horas, você e seus desejos.
"Com certeza", pensou o coveiro. "Acabariam comigo."

Mas o outro não se rendera. Ardia ainda depois de oito anos aquela paixão que resistiu à falta do recipiente do deleite. Resistiu à morte do organismo que a criou, sustentou-a, e não foi capaz de aniquilá-la. Sobrevivia monstruosamente a si mesma, transformando ânsia causal em supremo gozo final, mantendo-se diante da eternidade numa reentrância do velho crânio.
A voz quente e pausada de voluptuosidade soava ainda zombeteira.

- Você se mataria... Bela coisa! Eu também me matei... Ah! você se interessa não é verdade? Mas somos farinha de sacos diferentes... No entanto traga seu clorofórnio, aspire um pouco mais e ouça-me. Sentirá então a diferença entre a sua droga e a cocaína. Vamos.
O coveiro se voltou, e, achando-se com o peito no chão, apoiado nos cotovelos e com o frasco sob o nariz, esperou.

- Seu cloro! Não é muito, vejamos. E ainda morfina... Você conhece o amor pelos perfumes? Não? E o Jick de Guerlain? Então ouça. Casei-me aos 30 anos e tive três filhos. Com sorte, mulher adorável e três criaturas sadias, era perfeitamente feliz. Mas nossa casa era grande demais para nós. Você viu. Você não... enfim... viu que as salas luxuosamente decoradas parecem mais solitárias e inutéis. Acima de tudo solitárias. Todo o nosso palacete vivia assim em silêncio o estéril e fúnebre luxo.

"Um dia, em menos de oito ou dez horas, nosso filho maior nos deixou por causa da difiteria... Na tarde seguinte, o segundo também se foi, e minha mulher se jogou sobre a única coisa que nos restava: nossa filha de quatro meses. Que nos importavam a difteria, o contágio e o resto? Apesar da ordem do médico, a mão deu de mamar à criatura, e em pouco tempo a pequena se retorcia em convulsão, para morrer oito horas depoism envenenada pelo leite da mãe.
"Faça a soma:18, 24, 9. Em 51 horas, pouco mais de dois dias, nossa casa ficou completamente silenciosa, pois nada havia para fazer. Minha mulher permanecia no quarto e eu caminhava ao lado. Fora disso, nada, nem um ruído. E dois dias antes tinhamos três filhos.

"Pois bem. Minha mulher passou quatro dias arranhado o lençol, com um ataque cerebral, e eu socorri com morfina.
"- Esqueça isso - me disse o médico. - Não é para você.
"- Para quem, então? - perguntei. E apontei para o fúnebre luxo de minha casa que continuava acendendo lentamente catástrofes, como rubis.
" O homem se conformou".

" - Experimente sulfonal, qualquer coisa... Mas seus nervos não aguentarão.
"Sulfonal, brionina, estramônio... Bah! Ah, a cocaína! É infinita a distância que vai da felicidade esparramada em cinzas ao pé de cada cama vazia ao radiante resgate dessa mesma felicidade queimada, e que cabe numa única gota de cocaína! É assombroso ter sofrido uma dor imensa momentos antes; agora surge uma súbita e plena confiança na vida: intantâneo rebrotar de ilusões que se aproximam do futuro a dez centímetros da alma aberta. Tudo isto se precipita nas veias por intermédio da agulha de platina. E o clorofónio!... Minha muher morreu. Durante dois anos gastei em cocaína muito mais do que você pode imaginar. Sabe você algo de resistência? Cinco centigramas de morfina destroem fatalmente um indivíduo robusto. Quincey chegou a tomar durante 15 anos dois gramas por dia, isto é: 40 vezes mais do que a dose mortal.

" Mas isso tem um preço. Em mim, a verdade das coisas lúgubres, contida, estonteante, dia após dia, começou se vingar, e já não tive mais nervos para enfrentar as horríveis alucinações que me assendiam. Fiz então esforços inauditos para jogar fora o demônio, sem resultado. Três vezes resisti um mês à cocaína, um mês inteiro. E caía de novo. Você não sabe, mas saberá um dia, que sofrimento, que angústia, que suor de agonia uma pessoa sente quando pretende suprimir, por um único dia, a droga!

" Por fim, envenenado até o mais íntimo de meu ser, carregado de torturas e fantasma, convertido num trêmulo detrito humano, sem sangue, sem vida, miséria a que a cocaína emprestava dez vezes por dia um disfarce radiante, para afundar em seguida num estupor cada vez mais fundo, um resto de dignidade me levou a um sanatório e me entreguei atado de pés e mãos à cura.

" Ali, sob o império de uma vontade alheia, vigiado constantemente para que não pudesse adquirir o veneno, seria inevitável me descocainizar.

" Sabe o que se passou? Eu, junto com o heroísmode suportar a tortura, levava escondido no bolso um frasquinho com cocaína... Agora imagine o que é a paixão.

" Durante um ano inteiro, depois desse fracasso, continuei me injetando. Uma longa viagem me deu não sei que misterisosas forças de reação, e me apaixonei então."
A voz se calou. O coveiro, que escutava com o sorisso baboso e fixo no rosto, aproximou o olho e acreditou notar um véu ligeiramente opaco e vidrento nos olhos de seu interloucutor. A cútis, por sua vez, rachave-se visivelmente.

- Sim- prosseguiu a voz.- É assim que começa... Concluirei logo. A você, um colega, devo a história inteira.

" Os pais dela fizeram tudo o que era possível para resistir: um morfinâmano, ou algo assim! Para minha fatalidade, dela, de todos, eu pusera em meu caminho uma pessoas supernervosa. Mas admiravelmente bela! Tinha apenas 18 anos. O luxo era para ela o que o cristal para um perfume: seu recipiente natural.

" Na primeira vez em que eu , por ter esquecido de tomar a injeção antes de entrar, caí bruscamente em sua presença, idiotizando-me, enrugando-me, ela fixou em mim seus olhos imensamente grandes, belos e espantados. Curiosamente espantados! Pálida e sem se mover, ela me viu tomar a injeção. Pelo resto da noite não cessou um só instante de olhar-me. E por trás daqueles olhos dilatados que me viram assim eu intuía por minha vez a tara neurótica, o tio internado e o irmão menor epiléptico.

" No dia seguinte encontrei-a aspirando Jicky, seu perfume predileto. Lera em 24 horas tudo o que era possível sobre hipnóticos.

" Pois bem: basta que duas pessoas sorvam os deleites da vida de maneira anormal para que se compreendam quanto mais intimamente quanto mais extravagante for a benção do gozo. Elas se unirão em seguida, excluindo qualquer outra paixão, para se isolar a felicidade alucinada de um paraíso artificial.

" Em 20 dias, aquela maravilha de corpo, beleza, juventude e elegância ficou suspensa no sopro embriagador dos perfumes. Começou a viver, como eu com a cocaína, no céu delirante do seu Jicky.

" Por fim nos pareceu perigoso o mútuo sonambulismo em sua casa, por fugaz que fosse, e decidimos criar nosso paraíso. Nenhum melhor do que minha própria casa, onde nada fora tocado a qual eu não voltaria mais. Levantaram-se os amplos e baixos divãs para a sala. E ali, no mesmo silêncio e na mesma suntuosidade fúnebre que incubou a morte de meus filhos, na profunda quietude da sala, com a lâmpada acesa à uma da tarde, sob a atmosfera pesada de perfumes, vivemos horas e mais horas nosso fraternal e taciturno idílio, eu estendido imóvel com os olhos abertos, pálido como a morte, ela deitada no divã, mantendo sob o nariz , com a mão gelada, o frasco de Jicky.

" Não havia em nós o menorrastro de desejo. Mas como ela estava com suas frofundas olheiras, o penteado descomposto e o intenso luxo do vestido imaculado!

"Durante três meses raramente faltou, sem eu saber como, a visitas, casamentos e garden parties para que de nada suspeitassem. Naquelas ocasiões chegava ansiosa ao dia seguinte, entrava sem olhar pra mim, tirava o chapéu com gesto brusco, para se entregar em seguida, cabeça lançada para trás e olhos fechados, ao sonambulismo do seu Jicky.

" Vou abreviar: numa tarde, e por uma dessas reações inexplicáveis com que os organismos envenenados liberam em explosão suas reservas de defesa, os morfinômanos as conhecem bem!, senti todo o profundo gozo que havia, não em minha cocaína, mas naquele corpo de 18 anos, admiravelmente feito para ser desejado. Essa tarde, como nunca, sua beleza surgia pálida e sensual da suntuosa quietude da sala iluminada. Tão brusca foi a sacudida que me encontrei sentado no divã, olhando-a. Dezoito anos... e com essa beleza!

" Ela me viu chegar perto sem fazer um só movimento, e, quando me inclinei, olhou-me com fria estranheza.
'- Sim - murmurei.
- Não, não... - respondeu ela com voz neutra, desviando a boca com pesados movimentos da sua cabeleira.

"Por fim atirou a cabeça para trás e cedeu, fechando os olhos.
"Ah! Para que ter ressuscitado por um instante se minha potência viril, meu orgulho varão, não revivia mais! Estava morto para sempre, afogado, dissolvido no mar da cocaína.! Caí ao seu lado, sentado no chão, e mergulhei a cabeça no seu vestido, permanecendo assim uma hora inteira em profundo silêncio, enquanto ela, muito pálida, mantinha-se também imóvel, com os olhos abertos e fixos no teto.

"Mas esse rastilho de reação que acendera um efêmero relâmpago de ruína sensorial trazia também à tona da consciência quanta honra masculina e vergonha viril agonizavam em mim. O fracasso de um dia no sanatório e a vida diária ante minha própria dignidade nada eram em comparação com esse momento, compreende? Para que viver se o inferno artificial em que me precipitara e do qual não podia sair era incapaz de me absorver totalmente! E me liberava por um instante, para me submergir nesse final!

"Levantei-me, fui para dentro e me dirigi a um móvel onde guardava meu revólver. Quando retornei, ela tinha as pálpebras fechadas.
"-Vamos nos matar - eu disse.
"Entreabriu os olhos e durante um minuto não desviou o olhar de mim. A fronte límpida voltou a ter o mesmo movimento de cansado êxtase.

"- Vamos nos matar - ela murmurou.
"Percorreu em seguida com o olhar o fúnebre luxo da sala, em que a lâmpada ardia com luz forte, e contraiu ligeiramente o semblante.

"- Aqui não - acrescentou,
"Saímos juntos, sobrecarregados ainda de alucinação, e atravessamos a casa ressoante. Peça por peça. No fim, ela se apoiou a uma porta e fechou os olhos . Caiu ao longo da parede. Voltei a arma contra mim e me matei por minha vez.

"Então, quando, devido à explosão, minha mandíbula se desprendeu bruscamente e senti um imenso formigamento na cabeça, quando o coração teve dois ou três sobressaltos e ficou paralisado, quando em meu cérebro e em meus nervos e em meu sangue não houve a mínima probabilidade de tornarem à vida, senti que minha dívida com a cocaína estava quitada. Eu me matara mas também a matei por minha vez!

"Mas me enganei! Um instante depois vi, entrando vacilantes e de mãos dadas, pela porta da sala, nossos corpos mortos, que voltavam teimosamente."

A voz se partiu de repente.

- Cocaína! Por favor, um pouco de cocaína!

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À Deriva - Horacio Quiroga